domingo, 7 de setembro de 2008


"Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir [...] é rir sem fazer ruído eexecutando contracção muscular da boca e dos olhos. [...]O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo aoimaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nuncativesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir doque dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desseprecisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a redeem que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.Não há dois sorrisos iguais. [...] temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seucontrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança,o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre.E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.O Sorriso (este, com maiúscula) vem sempre de longe. É a manifestação de umasabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numadefinição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por umfrémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porquenão tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que sãorápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águasfundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foique na terra se moveu? E contudo era um sorriso.Mas eu falava de gente, de nós, que fazemos a aprendizagem do sorriso e dos sorrisosao longo da vida própria e das alheias. [...]A tudo isto é que eu chamo sabedoria. [...]Dir-me-ão que não cabe tanto no sorriso. Eu digo que cabe. Soube-o a noite passada,quando foi ele a única resposta para a insónia e para os monstros do pesadelo nascido nosono onde o corpo acabou por deslizar, cansado e aflito. Sorrir assim, mesmo sem olhos quenos recebam, é o verbo mais transitivo de todas as gramáticas. Pessoal e rigorosamentetransmissível. O ponto está em haver quem o conjugue."





José Saramago, «O sorriso», Deste Mundo e do Outro, 5.ª edição,Lisboa, Editorial Caminho, 1997

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